O aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz pelos soviéticos em 27/01/45 foi transformado com muita justiça no dia mundial de lembrança das vítimas do Holocausto. A insanidade coletiva em que os alemães mergulharam na década de 30 e que tomou o nome de nazismo é não apenas um dos momentos mais trágicos da humanidade, mas representou uma crise na forma do ocidente conceber a política, a filosofia, as tecnologias, a ciência e as relações do homem com estes elementos e com a natureza.
Efetivamente, desde o iluminismo havia se constituído quase que um novo credo religioso, só que este, contraditoriamente, era baseado na Razão. Uma crença vigorosa na capacidade do ser humano em entender, explicar e dominar a natureza. “Ousadia em conhecer” era um lema irresistível até 1914. Essa crença foi embalada pelos extraordinários avanços da ciência e descobertas que ocorreram ao longo do século XIX. Não apenas os físicos, químicos e biólogos expressavam um crescente otimismo com o futuro da ciência e a felicidade humana. Também os filósofos, políticos ou não, criam na capacidade da razão em planejar e construir um devir de paz, harmonia e igualdade, fossem estes seguidores do ‘progresso’ positivista ou do comunismo marxista. Conservadores ou reformadores, todos apostavam que o futuro seria melhor e viria como resultado da vontade humana e do poder da razão em planejar.
Em que pese os primeiros sinais de contestação se manifestarem já na virada do século pelas mãos de Freud e Nietzche, os inequívocos sinais de crise vieram mesmo com as duas grandes guerras. O mundo confrontou-se com os horrores do fascismo, particularmente de sua versão alemã, o nazismo. A ciência e a razão estiveram a serviço de uma máquina de mortes e destruição, cujas expressões máximas foram os campos de concentração e o Holocausto. Criar as câmaras de gás, administrar o fluxo interminável de seres humanos (judeus, negros, ciganos e outras minorias marcadas pelos ‘arianos puros’) rumo às prisões, aos campos, aos fornos crematórios, às câmaras de gás. Dar destino econômico aos seus bens, às suas posses, administrar o trabalho daqueles que eram usados até a exaustão completa como escravos. Tudo demandou um impensável uso da razão, da ciência, do planejamento, da vontade. Uma sociedade inteira embarcou nessa loucura, acreditando no mito de encarnarem uma raça superior. Hitler não foi o Mal encarnado. Ele expressou a ‘alma do povo’ alemão de sua época, foi aceito pelo povo e financiado por grandes conglomerados industriais, representando a solução germânica para a crise de 1929: manutenção do capitalismo sob forte intervenção e estímulo estatal ao lado da supressão da sociedade política liberal. O nazismo foi tão brutal no controle do indivíduo e da sociedade, que foi preciso uma nova palavra para designá-lo, totalitarismo.
Quando a guerra terminou, a confirmação do Holocausto (sim, porque muitos ainda insistiam que os fatos não eram tão brutais) e os 50 milhões de mortos jogaram os filósofos e os pensadores em geral numa tremenda ressaca. A Razão iluminista estava em xeque. Pessimistas e relativistas de todos os tipos ganharam corpo. Nietzche nunca imaginou que um dia poderia ter tantos leitores. Os horrores daqueles anos deixaram marcas, portanto, não apenas entre os judeus, mas no próprio modo do ocidente pensar sua relação com a razão, a ciência, o ‘progresso’, a política, a história, a ética. O que não quer dizer que estejamos aprendendo a lição.
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