sexta-feira, 26 de março de 2010

Celibato: notas para uma abordagem cultural (1)



A partir de um comentário do nosso amigo e pastor presbiteriano José Roberto, tentei encarar o desafio de fazer algumas observações adicionais sobre o celibato católico. São apenas algumas notas, afinal o tema daria um livro inteiro. E tenho certeza de que alguns amigos podem contribuir para pensarmos o tema. Por exemplo, nosso Filósofo Calvinista poderia bem nos brindar com outras notas sobre as filosofias e religiões antigas e sua relação com o celibato e, certamente, com mais desenvoltura que eu. Mas vamos lá.

1) Tomemos como ponto de partida a crítica da visão absurdamente simplista de que o celibato visava impedir a divisão dos bens da igreja por meio da herança. Podemos destacar duas coisas pelo menos. Por muito tempo, os livros de história foram e ainda são muito mal escritos. Simplificam questões altamente complexas e que se construíram ao longo de séculos. Tal simplificação está diretamente ligada ao fato de que nossos manuais escolares são elaborados nas últimas décadas com o objetivo explícito de dotar nossos alunos dos instrumentos fundamentais para serem aprovados em um vestibular. ATENÇÃO! São manuais de 500 páginas que tratam do Egito antigo até a eleição de Obama!!! A partir de meados da década de 1990 começaram a surgir também nos mercados os famigerados e desgraçados "volumes únicos": um único livro com cerca de 500/600 páginas tratando de Geral e Brasil!!! Por exemplo, qualquer um que tenha lido algo mais elaborado sobre o Nordeste Holandês sabe bem o absurdo que é tratar deste período em uma página de um livro de ensino médio! Portanto, isso já nos dá um bom indicativo dos problemas que temos.
Além disso, uma versão economicista da vida, das motivações humanas, dos acontecimentos, da história, prevaleceu na forma de narrar muitos episódios. Essas explicações, sob o manto de uma apenas aparente "visão crítica do mundo", apenas conseguem apresentar uma história de cínicos, de oportunistas, já que tudo e qualquer coisa parece ter que possuir uma motivação material. Um caso deste notável absurdo é dizer que a Reforma aconteceu porque a burguesia precisava de uma nova religião!!! Ora, Lutero pregou e afirmou suas posições em uma região de agricultores; as burguesias espanhola e as cidades italianas [de longe as mais desenvolvidas na época de Lutero] não abraçaram a Reforma em 1517 nem em outro tempo algum. Portanto, parece uma fórmula fácil, mas revela-se impressionantemente frágil. Sem dúvida que essas opiniões foram fruto de uma versão popularesca e muito pouca reflexiva de pretensos marxistas, que liam Marx como uma bíblia, tentavam "aplicar" o que liam a qualquer coisa e terminavam por elaborar péssimos textos. Que fique claro aqui que as versões da história feitas pelos "direitistas" são igualmente horríveis. Trocam os personagens, mas tentam igualmente reduzir a história a "grandes heróis" e a mitificações de pessoas e episódios. Outro caso, o celibato, como discutiremos abaixo.

2) A primeira fragilidade está no eixo do argumento. Se o celibato visa não dissipar os bens da igreja, o clero dormiu no ponto. Porque apenas no concílio de Trento (década de 1540, aquele mesmo concílio da Contra-Reforma) o celibato foi afirmado como exigência para todo o clero. Durante toda a Idade Média [o período de maior riqueza da Igreja, portanto, onde ela teria maior interesse em salvaguardar seus bens] não ocorreu a proibição, embora também não se incentivasse o casamento. Outra questão, quase óbvia, mas que deixamos passar é que desde a Roma antiga já se separava claramente a idéia do que eram os bens pertencentes aos indivíduos dos bens pertencentes a uma empresa ou instituição!!! Mas isso é tão claro. Os medievais não são menos inteligentes que nós, antes [talvez] pelo contrário [rsrs], e nós é que "copiamos" deles, que já adotavam dos romanos a separação entre "pessoa física" e "pessoa jurídica", embora essas palavras não fossem utilizados em Roma nem na idade média, mas o conceito já existia. Portanto, da mesma forma que hoje, era claro que um padre não era o proprietário da casa da paróquia, dos bens, afinal, eles se transferem ou são transferidos de uma paróquia para outra, sem que carreguem os bens daquela primeira.

Portanto, o direito romano, base fundamental do direito canônico, já distinguia muito claramente os bens pessoais dos bens das empresas ou organizações econômicas. Não haveria o que confundir [nem pela lógica nem pelo conhecimento jurídico extremamente bem elaborado que foi herdado dos romanos, dos bizantinos e dos comentaristas medievais] o bem dos padres dos bens da igreja. Mas a predominância de um marxismo de catecismo, simplista e reducionista, onde todas as coisas são reduzidas a uma dimensão econômica, cometeram essa tolice.

(... to be continued) rsrsrs.

6 comentários:

  1. Grannnde Cláudi'us:

    Belíssimo texto e análise. Na verdade não vim aqui contribuir e, sim, aprender. História é minha segunda opção; é muito bom ler historiadores que tentam "fugir do convencional", como você. Historiadores que utilizam "a ferramenta da filosofia" (não da história..rs) para derramar seu olhar sobre os fatos históricos.

    Quero, tão somente, fazer algumas colocações:

    Você reclama dos historiadores "marxistas" e também dos historiadores da "direita". Afinal de contas, onde você se enquandra?..rs. É possível, realmente, ter uma visão "isenta" da história?

    Os céticos diriam que não (nem da história nem da ciência, nem de qualquer outra forma de interpretação da verdade).

    Segundo eles, fatores "externos" e "internos" acabam por influenciar nossas pesquisas e mais ainda as conclusões dessas pesquisas.

    De fatores externos podemos entender as questões ideológicas, por exemplo. Um historiador católico terá uma visão completamente diferenciada do historiador protestante em relação à Reforma. Mesmo sendo o mesmo "objeto" de análise temos duas visões diferentes. Com qual dos dois estaria a "verdadeira" versão da história? Existe, de fato, uma "verdade na história" ou, ao contrário, essa depende das lentes do observador?

    Além dos fatores externos, os fatores internos como nossa própria história de vida, nossa criação, nossas leituras, nossa sociedade, nossa religião - tudo isso - interfere e influencia, diretamente, nossas atuais interpretações e asseverações dos fatos que nos cercam. Por conta disso, não é possível, segundo os céticos, chegar-se "aos fatos em si".

    Quais os verdadeiros motivos que levaram o Vaticano a tornar obrigatório o celibato? Fatores teológicos? Sociais? Históricos? Seria muito interessante que você aprofundasse uma pesquisa em relação a isso. Como vc bem disse, "isso daria um livro"; um bom livro, eu diria.

    Tudo de bom!

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  2. Querido Fábio, a conversa será boa. rsrs. Tentei responder ontem, mas a conexão deu pau e perdi até o que já tinha escrito.

    Você levantou algumas questões muito importantes, vamos começar por duas. Primeiro, sobre a neutralidade; segundo, sobre as correntes historiográficas.

    No passado, os positivistas acreditavam na neutralidade do pesquisador e tentaram até criar um método para a história, a fim de que ela pudesse ter um status científico. Ao longo do século XX é praticamente pacífico que não é possível ser neutro, mas parece-me que os melhores historiadores são os que, reconhecendo esta dificuldade, anunciam suas escolhas e apesar delas, não distorce os fatos a favor de si ou do grupo político/social/religioso com o qual se aproxima. De fato, com autores assim é plenamente possível o diálogo. Diferente do que ocorre com quem só enxerga defeitos no opositor, porque aí nesse caso não se trata de ciência ou reflexão séria; pode ser um panfleto ou algo parecido.

    Portanto, acho que podemos admitir o seguinte. Neutralidade não é possível, mas um trabalho profissional sério não pode ser feito com a distorção dos fatos.

    Segundo, a pesquisa histórica deve ser vista sob um ponto de vista profissional, que precisa atender certos requisitos, protocolos, enfim, certos procedimentos. Há o pesquisador 'free-lancer', curioso, que pode até vir a escrever um excelente texto. [às vezes consegue fazer mesmo um texto mais fluído e fácil de ler do que os 'profissionais' porque estes muitas vezes contaminam seus textos com um excesso de notas, citações, etc. marcas comuns na academia].

    O historiador tem uma função muito mais importante do que a colecionador de fatos pitorescos. Não é só dizer 'olha, aqui foi uma igreja assim assim. É recompor a teia, a rede de relações de poder, econômicas, culturais, religiosas onde aquele fato está inserido. O historiador não é um folclorista ou um etnógrafo [sem demérito para nenhum deles].

    Eu rejeito terminantemente as explicações 'economicistas' que reduzem tudo e qualquer coisa a interesses econômicos. Mas da mesma, a historiografia mais conservadora também produziu aberrações, porque em última instância estava voltada para a exaltação de heróis, datas e lugares. Acredito que o trabalho do historiador é tanto mais importante quanto consiga reconstituir as redes de poder [num sentido amplo] de um dado momento ou episódio. O profissional que faz isso não é neutro, tem suas escolhas, mas não pode ser desonesto, sob pena de ser apenas um pau-mandado do detentor de poder do momento.

    Sobre a continuidade da postagem, irei começar a próxima com Agostinho, quando ele trata nas suas Confissões da perspectiva de seu casamento e sobre a preferência de uma vida celibatária. Ora, no final do século V a igreja não tinha ainda nem a sombra das riquezas que teria por volta do ano 1000, portanto, temos um texto absolutamente importante para o debate porque está centrado em argumentos de ordem teológica. Depois, Paulo quando também diz ser o celibato preferível ao casamento. Paulo disse isso. Portanto, parece que não há escândalo na condição do celibato, erro doutrinário ou algo que o valha. Talvez o principal erro seja impô-lo como condição ao ministério. Nessa linha, também não seria uma falha a imposição oposta, a do casamento? Ou não haveria entre nós aqueles a quem Paulo se referia, que da mesma forma que ele, preferiam o celibato?

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  3. Pelo que estou percebendo vc está sendo um simpatizante do celibato. Acho que Isa pode te ajudar nesse sentido..rs...

    Ora...ora Claudi'us, veja o que vc diz: "Portanto, acho que podemos admitir o seguinte. Neutralidade não é possível, mas um trabalho profissional sério não pode ser feito com a distorção dos fatos". Mas a questão é justamente essa: a "distorção dos fatos". Ela não acontece de forma proposital (considerando que estamos falando de pesquisadores comprometidos com a verdade). antes, pelo contrário, ela se dá exatamente pela contaminação do pesquisador por fatores externos e internos, como já mencionei, segundo os céticos. Então, segura essa bombinha aí: "existe o fato em si"? Podemos acessá-lo? É possível falar "a verdade dos fatos"? Toda forma de enfrentamento da verdade histórica não acaba sendo, em última análise, uma "interpretação" desse fato? E, se é interpretação, como dizer quem está com razão ou ainda quem tem a interpretação correta dos fatos históricos? Os da esquerda? Os da direita? Os de centro-direitra (como vc..rs.)? Ou todas as interpretações estariam, de alguma forma, corretas, dependendo do ponto de vista da análise?
    Tudo de bom!

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  4. Bem, primeiro, centro-direita ou qualquer coisa que inclua 'direita' é ofensivo. rsrs. Agora, ao fundamental.

    Tua questão é a mais importante no debate acerca da história nos últimos vinte anos no Brasil. Deixa eu tentar resumir. Desde Foucault (que é um pensador da direita francesa, passou a vida batendo nos marxistas, mas aqui no Brasil, curiosamente, foi lido como se fosse de esquerda! também era homossexual e tinha sérios problemas com o pai, que ele julgava execessivamente repressor) que uma corrente crescente de céticos e relativistas negam a possibilidade do conhecimento histórico e tentam afiliar a história como uma espécie do gênero literatura!!! Cada história contada é apenas uma "versão" inventada e o que o historiador produz é apenas um tipo particular de narrativa. O próprio Foucault utilizou uma expressão semelhante a sua [hummm....] dizendo que o real é inacessível ao conhecimento porque depois que ele passa ficam apenas as versões, que são tipos narrativos! Portanto, para ele, não há possibilidade alguma para a história. Ele chegou ao máximo quando resolveu publicar um trabalho de pesquisa sobre alguma coisa como 'serial killers' e renunciou a escrever qualquer coisa para explicar as motivações de uma série de crimes cometidos por um preso que havia assassinado o pai e a mãe. Ele publicou o resultado de sua pesquisa apenas... com o depoimento do preso. Só isso. Mais relativismo impossível.

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  5. Assim, o relativismo traz implicações políticas e intelectuais devastadoras: se todas as culturas/histórias são equivalentes, onde está a verdade? No limite, foi o discurso para justificar os nazistas). Não haveria 'racionalidade' na história, isto é, não caminhamos para lugar algum, não há progresso, não há futuro melhor do que hoje, simplesmente nada. Sem possibilidades de comparações, de inferências, sem verdade a ser alcançada, sem juízos, sem avaliações, apenas narrativas. Ao gosto do freguês. Alinhamento perfeito e coroação do ceticismo e relativismo de Nietzche.

    Há um contraponto importantíssimo a essas correntes, que começam por assinalar o óbvio. Eu posso escrever um romance onde Calvino se arrepende de tudo o que fez, regressa ao catolicismo e vai combater os 'hereges' protestantes. Mas não posso escrever história assim. A verdade sim, é possível, e precisa estar ancorada em testemunhos, em documentos, em provas. Simples assim. A fronteira entre literatura e história pode ser tênue, mas existe e é muito bem demarcada. Bem como podemos demarcar a fronteira com a antropologia, que busca descrever e ao máximo possível entrar na cabeça do outro. Os historiadores recompoem redes de relações de poder onde se cruzam a economia, a política, a cultura, a sociedade, a religião ancorados em provas, testemunhos, documentos. Você tem razão quando lembra que pesquisadores 'são contaminados por fatores externos e internos e tal'. Penso que a afirmação do campo profissional do historiador tem construído algo melhor do que isso e que não temos hoje apenas 'histórias' escritas por militantes políticos ou por religiosos. Daí os limites por exemplo, dos 'historiadores oficiais' como Alderi com os presbiterianos.

    Veja bem, talvez seja bom deixar explícito, há excelentes historiadores de todas as tendências 'políticas', mas os ruins são sempre reducionistas [reduzem a realidade ao econômico ou a vontade de um herói], são estes que eu pensei em criticar.

    Para deixar também claro: eu acho que o real pode sim, ser atingido. E também acho que podemos produzir algo como verdade, embora, como dependemos de documentos e provas [senão é romance], amanhã essa verdade possa mudar. Isso não é relativismo ou ceticismo. É uma particularidade das 'ciências humanas', cuja natureza é diferente da física e não permite a reprodução experimental em laboratório. Mas a história tem protocolos e requisitos que lhe dão validade.

    O melhor autor para você acompanhar essa discussão no campo da história é Carlo Ginzburg, em particular um de seus livros: "Relações de força: história, retórica, prova". Ele faz um diálogo impressionante com os filósofos clássicos, em especial Aristóteles, que você gostaria muito.

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  6. kkkkkk...eita que essa deu trabalho heim?..rs. Sua exposição foi brilhante! Parabéns. Ainda bem que minha função aqui é somente provocar..rs. Provocar para forçar respostas brilhantes como a que acabou de apresentar..rs..

    Tudo de bom!

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